“Canta, ó deusa, a ira de Aquiles.”
Com essa invocação poderosa, Homero abre a Ilíada, colocando a cólera do herói no centro da narrativa. É com fúria, e não com amor, honra ou coragem, que se inicia o canto fundador da literatura ocidental. A guerra de Troia, com toda a sua pompa mitológica, é apenas o pano de fundo para uma tragédia muito mais íntima: a do homem que não sabe o que é ser feliz.
Ao longo de seus 24 cantos, a Ilíada não narra toda a guerra, como muitos pensam, mas apenas cinquenta dias do seu décimo e último ano. Não acompanhamos a famosa história do cavalo de madeira, nem a destruição de Tróia, mas o lento processo de autodestruição de um homem tomado por paixões desordenadas. O que está em jogo não é o destino da cidade murada, mas o destino de Aquiles e, com ele, o retrato de um tipo humano que continua muito presente entre nós.
Aquiles é o maior dos guerreiros. Filho da ninfa Tétis com o mortal Peleu, criado pelo centauro Quíron, invencível em batalha, dotado de velocidade e força sobrenaturais, ele é tudo o que um herói deveria ser. Mas também é vaidoso, impulsivo, orgulhoso, cruel. Sua vida é marcada por uma escolha trágica: viver uma vida longa e anônima, ou morrer jovem e conquistar uma glória eterna. Ele escolhe a glória. E, ao fazê-lo, condena-se.
Para este ensaio, não pegaremos todo o contexto da Guerra, da opção de Helena por fugir com Paris ou da aliança grega para derrotar a fortaleza de Tróia. Nossa narrativa começará a partir do momento que Agamenon, rei dos aqueus, apropria-se de Briseida, a jovem que havia sido concedida a Aquiles como prêmio de guerra. Ferido em seu orgulho, o herói abandona a luta.
Sua ira não se dirige apenas ao rei grego, mas ao próprio sistema que o traiu. Ele se retira para sua tenda e assiste, de longe, à carnificina que se segue, quando os troianos avançam sob as ordens de Heitor, o príncipe de Troia. Sem Aquiles, os aqueus estão à beira da derrota. Mas ele não volta. Sua honra, ferida, pesa mais do que qualquer dever coletivo.
Nesse intervalo, vemos surgir figuras que enriquecem o drama humano da Ilíada. Heitor, por exemplo, é o oposto de Aquiles. Ele luta por dever, não por glória. É um marido amoroso, um pai afetuoso, um filho respeitoso. É o defensor da casa, da cidade, da vida ordinária. Em sua última conversa com Andrômaca, sua esposa, sabemos que ele tem consciência de que vai morrer. Mesmo assim, permanece. Seu heroísmo é mais humano, mais contido e, por isso mesmo, mais trágico.
A tragédia maior, no entanto, ainda está por vir. Pátroclo, o amigo íntimo de Aquiles, que em algumas traduções é um primo e em outras interpretações, até mesmo seu amante, veste sua armadura e lidera os mirmidões na tentativa de salvar os gregos. Consegue conter o avanço troiano, mas é morto por Heitor. É somente então que Aquiles retorna. Mas agora já não é mais movido pela honra, e sim pela dor, pela culpa e pela sede de vingança. A guerra, que antes ele recusava, torna-se sua única válvula de escape. Sua ira se transforma em desespero, e o campo de batalha em um teatro de fúria desenfreada.
O duelo entre Aquiles e Heitor é um dos pontos culminantes da Ilíada. Heitor, abandonado pelos deuses, é enganado por Atena e morto diante dos muros de Troia. Aquiles não se contenta em matá-lo. Amarra seu corpo à carruagem e o arrasta por dias diante dos olhos da família e dos habitantes da cidade. Aqui, o herói cruza a fronteira da barbárie. Sua dor não encontra limite. A glória que perseguia já não o consola. Nem a vitória, nem a vingança, nem o massacre lhe devolvem o amigo morto.
E então, no último canto da obra, acontece o impensável. Príamo, o velho rei de Troia, desce sozinho até o acampamento inimigo para suplicar pelo corpo do filho. Ele se ajoelha diante de Aquiles, beija as mãos que mataram Heitor e pede que, por piedade, lhe permita honrar seu morto. Nesse momento, algo se quebra. Aquiles, que até então era consumido por uma raiva inextinguível, se vê diante de um homem tão destruído quanto ele. E chora. Chora por Príamo, por Peleu, seu próprio pai, por Pátroclo, por si mesmo. Pela primeira vez, Aquiles sente compaixão.
Mas seria isso suficiente para torná-lo feliz?
A resposta, quase inevitavelmente, é não.
Aquiles não era feliz. Ele não sabia sequer onde sua felicidade estava. A todo momento, Homero nos mostra um homem que vive em expectativa: de glória, de vingança, de redenção. Mas a glória, como ele mesmo descobre, é silenciosa. A vingança é vazia. A redenção é breve. Aquiles é um homem que vive correndo atrás de algo que jamais o preenche. E não é por falta de coragem ou de amor. Ele ama Briseida, ama Pátroclo, sofre com a ausência do pai. Mas esses afetos não têm espaço em sua trajetória heroica. Ele está condenado a abrir mão da vida ordinária em nome de um ideal que, no fim das contas, o destrói.
É aqui que se estabelece uma comparação inevitável, entre dois heróis daquela aventura: Aquiles e Ulisses. Embora Ulisses apareça na Ilíada apenas como conselheiro astuto, é na Odisseia que conhecemos seu verdadeiro drama: ele quer voltar para casa. Ulisses resiste a sereias, ciclopes, deusas sedutoras e tentações de toda ordem porque já sabe o que quer. Sua felicidade está no ordinário: na esposa, no filho, no lar. Aquiles, ao contrário, rejeita o comum. E paga caro por isso.
Essa oposição entre os dois heróis não é apenas uma questão de gosto literário. Ela toca no âmago da nossa própria experiência moderna. Quantas vezes trocamos a paz de um momento simples pela promessa de algo grandioso que ainda está por vir? Quantas vezes sacrificamos o amor presente por um ideal de sucesso ou reconhecimento que talvez nunca se concretize? Aquiles é, nesse sentido, um espelho. Ele representa a juventude que prefere brilhar e morrer a envelhecer ao lado de quem ama. Representa também o profissional moderno que acumula títulos e prêmios, mas que nunca para para viver de fato. Aquiles é o mito da performance que nunca basta.
Grandes autores do século XX já apontaram isso. Simone Weil, em seu ensaio A Ilíada ou o Poema da Força, afirma que o verdadeiro protagonista da epopeia não é Aquiles, mas a força — essa entidade que transforma homens em coisas. Rachel Bespaloff, por sua vez, destaca que Aquiles representa a tensão entre liberdade interior e destino trágico. George Steiner vê na Ilíada a tragédia absoluta, aquela em que nem mesmo a compaixão final é capaz de alterar o curso da destruição. E Harold Bloom diz que Aquiles é o mais autoconsciente dos heróis: sabe que escolhe a morte, mas ainda assim a escolhe. A glória vale mais que a vida?
É tentador pensar que a resposta de Homero é sim. Afinal, Aquiles é celebrado, cantado, eternizado. Mas Homero é mais sutil do que parece. Ele nos mostra que, mesmo no auge da glória, Aquiles está sozinho. Quando Príamo se ajoelha diante dele, o herói já não é invencível, nem inatingível. Ele é um homem ferido, cansado, vulnerável. E essa humanidade tardia e bela mas melancólica e não repara a tragédia que ele mesmo construiu.
Se olharmos com atenção, veremos que Aquiles fracassa não por falta de força, mas por falta de virtudes. Ele não é temperante, pois se deixa dominar pelas emoções. Não é prudente, pois ignora os conselhos. Não é justo, pois põe sua honra acima da vida de todos. E só é caridoso no último instante, quando já perdeu tudo o que amava. Seus vícios, a ira, o orgulho e a sede de vingança, o impedem de ser pleno. E onde não há plenitude, não há felicidade.
No fundo, Aquiles é a imagem de um homem que teve tudo, menos o essencial. Sua fama atravessou os séculos, mas ele nunca saboreou o simples gosto da paz. Morreu jovem, sim, e glorioso. Mas também incompleto. Morreu sem saber o que era ser apenas um homem, com seus afetos, seus erros, seus vínculos — sem o peso de ser o maior de todos.
E é por isso que, ao fim da Ilíada, não celebramos a vitória, mas lamentamos o vazio. Porque, entre todos os heróis de Homero, Aquiles foi o mais brilhante e, talvez por isso mesmo, o mais triste.