Para iniciar esse ensaio, precisei recorrer a alguns conceitos e autores, tentando aproximar esse contexto do drama humano. Por isso, não viso aqui fazer um ensaio teológico, mas como um romancista, avaliar o texto do Evangelho de Mateus 19 e a partir daí tentar me aproximar do drama sofrido pelo jovem rico ao receber as palavras do Cristo.
A Catarse: Conceito e Exemplo na Parábola do Jovem Rico em Mateus 19
A catarse é um conceito originário da Grécia Antiga e discutido na filosofia, na literatura e na psicologia e representa um processo de purificação emocional ou espiritual que permite ao indivíduo liberar tensões internas, alcançando um estado de renovação ou clareza.
No contexto aristotélico, descrito na Poética, a catarse ocorre por meio da tragédia teatral, onde o espectador vivencia emoções como o medo e a piedade, resultando em uma liberação purificadora. Na psicologia moderna, especialmente na psicanálise freudiana, ela se manifesta como a expressão de emoções reprimidas, promovendo alívio terapêutico.
A história do jovem rico em Mateus 19, 16-30 exemplifica esse conceito, ao ilustrar um momento de confronto interior que, embora doloroso, oferece potencial para purificação e transformação de sua própria vida e destaca a tensão entre apego material e salvação eterna.
O herói trágico
No teatro grego, o herói trágico é alguém que comete um erro (hamartía) e por conta deste é conduzido ao reconhecimento desse erro (anagnórisis), até que, por fim, sofre as consequências inevitáveis (pathos).
Ao acompanhar esse processo, o público sente piedade pelo herói, porque reconhece sua humanidade e temor (porque sabe que também poderia cair da mesma forma). Esses sentimentos intensos purificam a alma e o espectador sai do teatro transformado, mais consciente da própria condição.
Essa purificação não é apenas emocional: é também ética e espiritual. É o momento em que o ser humano percebe os limites do orgulho, a força do destino e a necessidade de virtude.
Esse processo não é mero entretenimento, mas uma ferramenta ética, argumentando que a arte trágica educa moralmente ao evocar empatia e reflexão. No século XIX, com o advento da psicanálise, Sigmund Freud e Josef Breuer expandiram o termo em Estudos sobre a Histeria (1895), descrevendo a catarse como a liberação de afetos reprimidos por meio da verbalização de traumas, o que alivia sintomas neuróticos, fazendo com que a catarse assuma um viés terapêutico, argumentando que o confronto com o inconsciente é essencial para a saúde mental.
Em um sentido mais amplo e argumentativo, a catarse transcende o individual, aplicando-se a contextos coletivos ou espirituais. Na teologia cristã, embora não explicitamente nomeada, ela pode ser interpretada como um momento de “metanoia”, arrependimento e mudança de mente, onde o encontro com a verdade divina provoca uma crise emocional que leva à purificação.
A Catarse no Encontro do Jovem Rico com Jesus (Mateus 19:16-30)
Quando transportamos a ideia de catarse para o Evangelho segundo São Mateus 19, 16-30 serve como um exemplo paradigmático de catarse. A tragédia grega termina na destruição, entretanto, a tragédia cristã transforma a destruição em redenção.
Nesse drama, o jovem rico vivencia um confronto que expõe suas repressões internas, argumentando a favor da necessidade de desapego para a verdadeira salvação. A “catarse” do jovem rico é a tristeza iluminada: ele compreende a verdade, o chamado de Cristo e, embora não a aceite plenamente, sente o peso da graça. Aquela dor não é mero remorso, é o início de uma purificação interior.
Em linguagem espiritual, poderíamos dizer que a catarse é o instante em que a alma reconhece o próprio apego e começa a desejar ser livre. Mesmo que a libertação ainda não ocorra, o reconhecimento já é um passo de cura. No texto, um homem jovem e rico se aproxima de Jesus perguntando:
“Mestre, que boa obra preciso fazer para conseguir a vida eterna?” (v. 16). Jesus responde inicialmente citando os mandamentos, aos quais o jovem afirma ter obedecido desde a juventude, mas indaga: “Que me falta ainda?” (v. 20).
Aqui, inicia-se o processo catártico: Jesus, percebendo o apego do jovem à riqueza, expõe aquilo que o prende à vida mundana e o impede de buscar o caminho da santidade, como veremos adiante: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (v. 21).
O clímax da catarse ocorre no verso 22: “Ao ouvir isso, o jovem afastou-se triste, porque tinha muitas posses”. Essa tristeza não é superficial; representa uma liberação emocional profunda, um confronto com o “pathos” interior, o medo de perder a segurança material que reprimia sua plena entrega espiritual.
Argumento que esse momento é catártico porque expurga a ilusão de autossuficiência: o jovem, que se via justo pela obediência externa aos mandamentos, é forçado a reconhecer que sua riqueza o escraviza, impedindo-o de entrar no Reino dos Céus. Jesus reforça isso aos discípulos, destacando a impossibilidade humana e a necessidade divina para a salvação.
“Em verdade vos digo que é difícil para um rico entrar no Reino dos céus. E, novamente, vos digo: é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (vv. 23-24).
Essa interpretação argumenta que a catarse no jovem rico não culmina em redenção imediata, ele se afasta triste , mas planta a semente para uma possível purificação futura.
Diferentemente da tragédia aristotélica, onde a catarse é coletiva para o público, aqui ela é pessoal, espiritual e convidativa, trazendo o leitor a refletir sobre seus próprios apegos. A tristeza do jovem é um argumento implícito pela catarse, porque ilustra como o encontro com Cristo provoca uma crise que pode levar à renovação ou ao abandono de um caminho de busca por algo que transcende a busca humana.
O Evangelho como dramaturgia da alma
No teatro grego, a tragédia se encerra na morte ou na destruição irreversível do herói.
O erro (hamartía) conduz à ruína (pathos), e o reconhecimento (anagnórisis) chega tarde demais para evitar o destino. A função da tragédia é pedagógica: o público sente piedade e temor, e sai purificado pela catarse.
O jovem rico vive exatamente essas três etapas. Hamartía: o erro de confiar nas próprias obras e bens como garantia de salvação. Anagnórisis: o reconhecimento, quando ao ouvir “vende tudo o que tens”, percebe sua escravidão interior. Pathos: o sofrimento, expresso na tristeza que nasce do conflito entre o desejo e o medo.
Tudo o que compõe uma tragédia está ali. Mas há uma diferença decisiva: a tragédia grega termina com a morte; a tragédia evangélica termina com a possibilidade da graça.
Há textos escritos para o palco da história e textos que nascem para o palco da consciência. O Evangelho do jovem rico pertence ao segundo grupo. Em apenas sete versículos (Mateus 19,16–22), ele encena o drama universal da alma diante de Deus: o conflito entre a fé e o apego, entre o chamado à perfeição e a recusa do desprendimento. É uma narrativa breve, mas construída como uma tragédia clássica.
Como toda tragédia, começa com uma pergunta: “Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?”. O jovem que se aproxima de Jesus parece um herói moral, rico, instruído e justo. Cumpre os mandamentos, busca a verdade e deseja o bem. Mas o Evangelho não é um elogio à virtude exterior: é a proposta de um espelho que mostra a alma e quando observamo-na sob a luz de Cristo, percebemos as nossas imperfeições e nossa pequenez. E nele o personagem descobre que até a sua perfeição era repleta de uma forma refinada de orgulho.
Se Aristóteles, na Poética, definiu a tragédia como a imitação de uma ação grave e completa que desperta piedade e temor, conduzindo à catarse. Séculos depois, Joseph Campbell mostraria que toda narrativa humana segue o mesmo padrão: o herói é chamado à aventura, resiste, é provado e retorna transformado. E Stanislavski ensinaria que não há personagem verdadeiro sem ação interior, o ator precisa viver o conflito para que a cena seja autêntica.
Muito antes deles, dois Doutores da Igreja, São Gregório Magno e São Tomás de Aquino, já viam nesse episódio o retrato espiritual de todo cristão. Gregório o interpreta como a história de quem deseja Deus, mas teme a liberdade; Tomás distingue entre o cumprimento dos mandamentos (caminho da salvação) e a vivência dos conselhos evangélicos (caminho da perfeição).
Sob essas quatro lentes, a tragédia, o mito, o teatro e a teologia, o encontro de Cristo com o jovem rico revela-se uma peça em três atos, cujo palco é a estrada da Galileia e o cenário, o coração humano.
Ato I — O Chamado
“Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?” (Mt 19,16)
1. A hybris: o orgulho da justiça própria
Na tragédia aristotélica, o herói cai não por maldade, mas por hybris — a confiança excessiva em si mesmo. O jovem rico aproxima-se de Jesus como quem busca um prêmio merecido. Quer saber “o que fazer”, como se a vida eterna fosse resultado de mérito humano. Sua hybris é sutil: a ilusão de que a salvação pode ser conquistada por desempenho.
Cristo, porém, responde com uma provocação divina: “Por que me perguntas sobre o que é bom? Só há um que é bom.” Com isso, Ele desmonta a base do orgulho. O bem não é uma obra, é uma Pessoa. O jovem ainda não percebe que o que procura está diante dele, mas o trata como um mestre moral, não como o Senhor.
A tragédia começa no instante em que o herói confunde virtude com posse. Julga-se bom e, portanto, digno do Reino. Essa confiança em si mesmo é sua queda invisível — anterior à própria recusa ao desapego.
2. O mundo comum e o chamado à aventura
Pela lente de Campbell, o jovem vive no “mundo comum”: o território seguro das boas obras. É o herói antes da travessia, amparado pela lei e protegido por certezas. O chamado à aventura chega quando Jesus diz: “Guarda os mandamentos.” Ele já os cumpre, mas sente que algo lhe falta. A pergunta “que me falta ainda?” revela o vazio moral que nenhuma regra preenche.
Este é o ponto exato do Chamado à Aventura: o momento em que o homem descobre que conformar-se às normas não basta. No mito, o chamado vem por um mensageiro sobrenatural; aqui, vem pelo olhar de Cristo, que o convida a ultrapassar a fronteira entre o dever e o amor.
3. O ator diante do papel da fé
Stanislavski ensina que o ator deve crer nas circunstâncias imaginárias, viver de modo que o “se” se torne real. O jovem rico é um ator diante do papel da fé, mas ainda não o incorpora. Pergunta “o que devo fazer?”, como quem busca instruções para ensaiar uma cena. Cristo, porém, o convida a algo que não se representa: a transformação interior.
O personagem permanece preso à ação exterior, aos gestos visíveis, e não à ação interior que move a alma. Ele observa o drama, mas não o vive. Quando Jesus o chama ao desapego, o Evangelho deixa de ser texto e torna-se improviso: a fé não é atuação, é encarnação.
4. O bem natural e o início da iluminação
São Tomás de Aquino ensina que os mandamentos são o início da vida moral, mas não a sua perfeição. O jovem simboliza a natureza humana guiada pela razão, capaz de reconhecer o bem, mas ainda incapaz de amá-lo acima de tudo. Cristo o conduz pedagogicamente: primeiro confirma a lei (“guarda os mandamentos”), depois o convida à graça (“se queres ser perfeito”).
Gregório Magno, por sua vez, lê a cena como a corrida do homem zeloso: “Ele correu até o Senhor e perguntou.” Mas, comenta Gregório, “correu com os pés, não com o coração”. O corpo deseja, mas a alma hesita. A corrida inicial representa o entusiasmo humano; o recuo posterior, a limitação espiritual.
O primeiro ato termina, assim, com o chamado que ressoa, mas ainda não é atendido.
Ato II — O Conflito
“Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me.” (Mt 19,21)
1. A anagnórisis: o reconhecimento da verdade
O segundo ato é o centro trágico da peça. Na estrutura aristotélica, esse é o momento da anagnórisis, o reconhecimento. O herói vê a verdade, mas tarde demais. O jovem compreende, pela primeira vez, o abismo entre a lei que cumpre e o amor que não possui.
A fala de Cristo é o eixo do drama: “Se queres ser perfeito…”. É a frase que separa o humano do divino.
Até aqui, ele vivia no terreno do possível; agora, é convidado ao impossível e a tragédia nasce desse choque: o homem encontra o Absoluto e percebe que não pode dominá-lo.
A anagnórisis é espiritual: ele se reconhece prisioneiro do que acreditava possuir. Suas riquezas deixam de ser bens e o palco se ilumina, e ele enxerga a verdade com clareza, mas não suporta a luz.
2. O limiar e a provação suprema
Na jornada de Campbell, esse é o limiar. O herói é convidado a atravessar a fronteira que o separa do desconhecido. É o momento do “Vai, vende tudo.” Mas, em vez de atravessar, ele hesita.
Campbell descreve essa fase como a recusa do chamado: o herói teme o sacrifício e retorna ao mundo comum.
A diferença é que, no Evangelho, a recusa não é apenas medo, é amor dividido. O jovem deseja o Reino, mas ama suas posses. Quer o infinito, mas agarra-se ao finito. É a provação suprema: o combate entre dois amores. Ele não compreende que Cristo oferece uma dicotomia.
Todo mito tem um guardião do limiar, o ser que impede a passagem até que o herói prove sua fé. Aqui, o guardião é o próprio Cristo. Ele não é inimigo, é um espelho. Sua presença revela o que há de mais íntimo no jovem. A luta não é física: é a luta de quem deve morrer para si mesmo.
3. A verdade emocional e a quebra da ação interior
Stanislavski chamava de “ação interior” o movimento da alma que sustenta a ação exterior. Quando o ator perde essa conexão, sua interpretação se torna mecânica. O jovem rico vive o colapso dessa ação interior. Ele entende a cena, compreende o texto, mas não consegue agir.
No teatro, esse é o instante em que o personagem congela e é tomado pela paralisia, o gesto mais autêntico que poderia fazer. Ele não consegue mentir diante da verdade. É o ponto máximo da veracidade emocional: ele sente, mas não responde.
Stanislavski dizia que o ator deve descobrir a “supertarefa”, o propósito que unifica todas as ações. O jovem acreditava que sua supertarefa era “alcançar a vida eterna”, mas Jesus o revela que a verdadeira supertarefa é amar sem reservas. Ele percebe, com horror, que seu roteiro interior era outro. E é aí que sua personagem se desfaz.
4. Os conselhos evangélicos e a purificação do amor
Para Tomás de Aquino, Cristo distingue aqui os dois níveis da vida espiritual: os mandamentos, que afastam o mal, e os conselhos, que removem os obstáculos ao amor.
O “vai, vende tudo” é o conselho da pobreza; o “segue-me” é o da obediência; e o “terás um tesouro no céu” é o da esperança.
Tomás explica que o jovem “cumpria os mandamentos”, mas “faltava-lhe a perfeição da caridade”. A perfeição não é ausência de falha, mas plenitude de amor. O jovem não peca por avareza, mas por incapacidade de se esvaziar. Ele quer Deus, mas ainda quer ser dono da própria alma.
Gregório Magno lê o mesmo momento com doçura: “Vender tudo não é apenas deixar os bens, mas expulsar do coração o amor por eles.” Muitos deixam os bens, mas não o desejo; outros, sem deixar nada, deixam tudo, porque nada amam fora de Deus.”
É a purificação do amor, o fogo que transforma o ouro exterior em luz interior.
Ato III — A Queda e o Silêncio
“O jovem, ouvindo isso, foi embora triste, porque possuía muitos bens.” (Mt 19,22)
1. A catarse: a tristeza como purificação
Na tragédia aristotélica, o final é a catarse: a purificação das emoções pelo reconhecimento da perda. O público sente piedade e temor porque vê no herói a própria fragilidade humana. A tristeza do jovem é a catarse do leitor. Ele é a figura do homem que conheceu a Verdade e não a abraçou e nós trememos, porque o reconhecemos em nós mesmos.
Mas a catarse evangélica tem uma diferença crucial: não é apenas purificação estética, é convite à conversão. A dor do jovem é o início da graça. Ele parte triste, mas parte iluminado. E aqui temos a diferença entre a tragédia clássica e a cristã. A grega termina na morte; a tragédia cristã termina na consciência.
2. A negação da travessia e o mito inacabado
Na estrutura de Campbell, esse é o momento do retorno, o herói, após vencer a provação, traz o elixir da sabedoria. Mas o jovem não retorna, ele não completa o ciclo e por isso é um herói interrompido, o anti-herói sagrado.
Campbell chamaria isso de “mito inacabado”, uma história que termina antes da transformação. No entanto, o inacabamento aqui é deliberado: o Evangelho deixa espaço para o leitor completar a jornada. A ausência do final é o convite à continuação. O “retorno” pode ocorrer depois, quando a semente da tristeza germinar em arrependimento.
Cristo não o persegue, não o condena. O silêncio de Jesus é o último ato: o amor que respeita a liberdade. Ele o deixa ir, porque só o amor livre é verdadeiro. A tragédia, então, não é a perda do Reino, é a recusa momentânea de entrar nele.
3. O fracasso como revelação da verdade
Para Stanislavski, o fracasso é um instante de revelação. Quando o ator erra, mas permanece verdadeiro, o público acredita nele. A força da cena não está na perfeição técnica, mas na sinceridade da emoção.
O jovem rico, ao sair triste, é talvez o personagem mais autêntico do Evangelho. Ele não dissimula, não encena fé, não finge desapego. Ele é real — e por isso comovente. Sua tristeza é o reconhecimento silencioso da própria escravidão interior.
Stanislavski dizia que o bom ator não representa o sentimento: ele o vive. O jovem vive sua dor até o fundo. É o homem dividido que compreende o chamado, mas não o suporta. E, nesse realismo espiritual, revela o que há de mais humano na fé: a distância entre o saber e o querer, entre compreender a vontade de Deus e ser capaz de cumpri-la.
Diferente dos apóstolos, que deixaram tudo e seguiram o Cristo, o jovem desaparece no anonimato. Não sabemos seu nome, sua história ou seu destino. Mas talvez seja justamente esse silêncio que o torna tão universal — ele é cada um de nós, quando compreendemos o Evangelho, mas ainda não temos coragem de vivê-lo.
4. A graça implícita e o início da conversão
Tomás de Aquino afirma que a graça atua mesmo quando é resistida. O jovem não obedece, mas é tocado. A tristeza é um sinal da graça preveniente, o primeiro movimento do coração que reconhece sua prisão.
Gregório Magno vê o mesmo gesto sob outra luz: “Ele foi embora triste porque amava mais o ouro do que o autor da alegria.” E completa: “Quem prefere o que passa ao que permanece, afasta-se triste, pois o amor do mundo produz tristeza, e só o amor de Deus gera alegria.”
Essa é a leitura mais delicada da tragédia cristã: a dor como início de cura. O jovem não é condenado está em processo. O Evangelho encerra a cena, mas não o destino. O palco se apaga, mas a história da alma continua fora de campo.
V. O Teatro da Salvação
1. A síntese das quatro lentes
O encontro entre Jesus e o jovem rico é uma tragédia aristotélica, uma jornada campbelliana, uma cena stanislavskiana e uma parábola teológica. Cada lente ilumina uma dimensão da alma:
Aristóteles mostra a estrutura do drama humano: o orgulho, o reconhecimento, a purificação. Campbell revela a dinâmica do chamado e da recusa: o mito universal da conversão. Stanislavski desvela o palco interior: a autenticidade da emoção e a fé como “ação interior”. São Gregório Magno e Tomás de Aquino revelam o sentido espiritual: o chamado à perfeição e a graça que age mesmo na recusa.
Unidas, essas leituras compõem o que se poderia chamar de teatro da salvação, o drama divino encenado no coração humano.
2. O herói que não partiu
O jovem rico é o herói que não atravessa o limiar. Mas isso não o reduz a um fracasso moral: faz dele uma figura arquetípica. É o espelho do homem moderno, instruído, ético, saturado de informações espirituais, mas ainda incapaz de se entregar. Sua tragédia é nossa tragédia: conhecer o caminho e não ter coragem de percorrê-lo.
Campbell diz que “o herói é aquele que dá a vida por algo maior do que ele mesmo”. O jovem não deu a vida e é justamente por isso que a história permanece viva. Porque ela não se encerra no passado, mas se repete em cada consciência.
3. O espectador como sucessor
Na tragédia clássica, o público é purificado pelo sofrimento do herói. No Evangelho, o leitor é convidado a ser o herói que o personagem não conseguiu ser. A catarse não é apenas emoção, é vocação.
Ao contemplar o jovem que se afasta triste, o leitor sente piedade e temor, mas também escuta o eco do chamado: “Segue-me.” A peça termina em nós e o palco muda de lugar, sai da Galileia e entra no nosso coração.
4. A superação da tragédia
A diferença entre a tragédia grega e a tragédia evangélica está na finalidade. A tragédia antiga purifica pela consciência da finitude; a tragédia cristã purifica pela abertura à eternidade.
Em Sófocles, Édipo reconhece e se destrói. Em Mateus, o jovem reconhece e é deixado livre, para que, um dia, se reencontre com o olhar que o chamou.
A verdadeira catarse é a esperança. Cristo não fecha a cena com morte, mas com silêncio e o espaço onde a graça trabalha invisivelmente.
5. O método stanislavskiano da fé
A fé, como o teatro, exige ação interior. Não basta compreender o texto; é preciso vivê-lo.
Cristo não pede ao jovem que admire o ideal da pobreza; pede que o viva. O cristianismo, portanto, é o mais radical dos teatros: nele, cada fiel é ator e personagem, e o diretor é o Espírito Santo.
Stanislavski propunha um exercício decisivo ao ator: o da magia do se. “E se eu fosse aquele homem, naquela situação, o que realmente sentiria?” Essa pergunta não busca fingimento, mas empatia radical. É o que transforma o intérprete em personagem vivo.
No palco da fé, essa mesma pergunta ecoa com força: E se eu fosse o jovem rico? E se o Cristo estivesse agora diante de mim, dizendo: “Vende tudo o que tens”? E se o “tudo” não fosse dinheiro, mas aquilo em que deposito minha identidade, meu sucesso, meu poder, minha juventude, minha necessidade de controle?
É aqui que o Evangelho se torna teatro sagrado. A magia do se espiritual é o primeiro passo da conversão: a capacidade de se colocar na cena e permitir que a palavra penetre o real.
Não se trata de imaginar-se no tempo de Jesus, mas de reconhecer que o tempo de Jesus acontece agora, em cada decisão onde o coração é chamado a preferir o Eterno ao efêmero.
Stanislavski acreditava que, quando o ator vive sinceramente o se, a cena deixa de ser representação e se torna verdade. Da mesma forma, quando a alma se permite imaginar com fé. “E se eu acreditasse plenamente?”, o Evangelho deixa de ser texto e se torna vida.
Assim, o teatro e a fé se tocam: ambos exigem presença real, vulnerabilidade e risco.
A arte do ator é uma pedagogia da encarnação; a fé é a encarnação tornada arte da vida.
O palco interior e o ator divino
Stanislavski dizia que o palco exterior é apenas o reflexo de um palco interior. É no invisível que a ação nasce, e é de lá que ela irradia verdade. O Evangelho confirma isso: o palco de Deus é o coração. Toda transformação verdadeira ocorre quando a alma deixa de “representar” e começa a existir diante d’Aquele que a criou.
Cristo é o ator perfeito, aquele que vive plenamente a verdade de sua missão. Ele não “interpreta” o amor de Deus; Ele é o amor de Deus encarnado. Diante dele, todo ser humano é convidado a abandonar a performance moral e a entrar no papel real de filho.
O jovem rico não consegue fazê-lo. Ele permanece um ator hesitante, consciente de que o papel é sublime, mas incapaz de entregá-lo ao corpo. Ele compreende a verdade do texto, mas não se permite ser tomado por ela. O teatro da salvação exige um tipo de coragem que não se aprende nos ensaios, exige fé, a arte mais difícil de todas.
A catarse espiritual: do medo ao amor
Aristóteles via a catarse como purificação do medo e da piedade.
No Evangelho, essa purificação se cumpre de modo ainda mais profundo: o medo é transformado em amor. A dor do jovem rico, sua tristeza, é a primeira purificação da alma que começa a perceber o abismo entre o “eu” e o “Tu”.
Gregório Magno via essa tristeza não como castigo, mas como remédio: “A dor que vem de Deus é já o início da cura.” Tomás de Aquino chamaria esse momento de gratia praeveniens — a graça que antecede a adesão da vontade.
Deus age no coração mesmo quando este se afasta. A lágrima que não cai é já uma oração em estado bruto.
A tragédia grega encerrava-se na ruína; a tragédia cristã começa na ruína e termina na possibilidade de ressurreição. Por isso, o jovem rico é uma figura inacabada: ele não morre — permanece vivo, com a ferida aberta e é nessa ferida que Deus trabalha.
A verdadeira catarse não é o alívio estético, mas o despertar da consciência. O Evangelho não busca aplauso; busca conversão. O espectador sai do texto transformado, não porque viu um herói morrer, mas porque se viu morrer no herói.
O drama como caminho de salvação
Toda arte autêntica conduz à verdade, e toda verdade conduz ao Verbo. Aristóteles, Campbell e Stanislavski, cada um à sua maneira, falam da mesma dinâmica interior que os Padres da Igreja chamam de conversio cordis, conversão do coração.
O teatro da Grécia queria purificar as emoções; o teatro cristão quer purificar o amor.
Campbell mostrou que o herói retorna com o elixir; Gregório e Tomás mostram que o elixir é o próprio Deus. Stanislavski buscou o ator sincero; Cristo busca o homem verdadeiro.
O jovem rico é o protótipo de quem vive no limiar entre a arte e a graça, alguém que entende o texto, sente a emoção, mas não ousa atravessar o portal da entrega e no entanto, é precisamente ali, na fronteira da recusa, que o milagre pode começar.
Porque a tristeza é uma forma de fé que ainda não aprendeu a sorrir.
Epílogo, O silêncio que continua
O Evangelho termina em silêncio: “E o jovem foi embora triste.” Mas, de certo modo, o texto não termina ele se estende até nós. Cada pessoa que escuta essa história torna-se o novo ator convocado para a cena.
Aristóteles diria que a tragédia é completa porque encerra uma ação perfeita. Mas o Evangelho inverte essa lógica: ele é perfeito porque não se encerra. A ação divina continua em cada geração, reescrevendo o roteiro da liberdade.
O Cristo permanece no palco, olhando para cada um de nós com o mesmo olhar que dirigiu ao jovem rico. Ele não força, não corrige o texto apenas repete o convite:
“Se queres ser perfeito, vem e segue-me.”
O público, agora, somos nós. A peça aguarda a resposta. E o céu inteiro, como um teatro suspenso, silencia para ouvir se diremos “sim”.